A construção do caso clínico na equipe inter disciplinar

MÔNICA ASSUNÇÃO COSTA LIMA

A palavra clínica sugere o termo kliné que em grego quer dizer leito. O clínico, em sua origem, é justamente aquele que se debruça sobre o leito do paciente para observá-lo.
A clínica médica a primeira a se constituir se funda como uma clínica do olhar, como tão bem demonstrou Foucault no livro O nascimento da Clínica.

Segundo o filósofo, o método clínico instaura uma delimitação no campo da observação e se compõe a partir de dois elementos: o inquérito e o exame, ambos estruturados pela linguagem. Isso significa que em tal método os sintomas estão para a doença assim como os significantes estão para o significado. O olhar do médico intervém para agrupar os sintomas, para estabelecer uma relação entre eles e, finalmente, para deduzir a doença, que é o resultado de uma alteração anatômica ou fisiológica.

Assim, de acordo com Foucault, o método clínico que a medicina inaugura lê os sintomas para reuni-los em quadros, criando, com esta operação, os tipos clínicos. Tal método instaura um discurso sobre a doença que permite constituir, como fatos médicos, elementos que na ausência deste discurso permaneceriam contingentes e desarticulados.

É importante chamar a atenção para o fato de que os elementos que o médico recolhe em seu exame e inquérito são aqueles passíveis de se inscrever em seu campo de saber. A observação no leito do doente visa recolher tudo o que pode ser enunciado nos termos do discurso médico e afastar tudo o que neste campo discursivo não pode ser articulado. A habilidade do médico para manter este discurso sendo avaliada tanto em função do que ele tenha afastado, quanto do que ele tenha sabido reter.

Sabemos que entre os elementos afastados do discurso médico encontram-se aqueles referentes à subjetividade. A objetividade da medicina estando fundada, como bem demonstrou Jean Clavreul, na abolição da subjetividade tanto do médico quanto do doente.

Não introduzo, aqui, nenhuma novidade. Devemos dizer, no entanto, que há muito a experiência da clínica deixou de ser prerrogativa da medicina, tendo sido adotada por várias outras disciplinas tais como a psicanálise, a psicologia, a fisioterapia, a fonoaudiologia, a terapia ocupacional, etc. É preciso acrescentar ainda que estes outros saberes acabaram por introduzir, na prática clínica, novos olhares, invenções e possibilidades.

Neste contexto, cabe-nos então perguntar, o que se tornou a clínica na perspectiva de uma assistência interdisciplinar. E, mais especificamente, para nos aproximarmos do objeto de nossa interrogação nesta mesa: o que seria a construção do caso clínico, no contexto de uma clínica feita por muitos?

A perspectiva da construção do caso clínico que trago hoje para vocês, é perspectiva influenciada pela teoria da psicanálise. Não poderia ser de outro modo, já que esta é minha formação. Buscarei, entretanto, pensar a construção do caso, não no sentido estrito que assume a noção de caso clínico para a psicanálise, mas definindo algumas diretrizes para sua construção num modelo de experiência clínica no qual dialogam diferentes disciplinas e saberes.

Gostaria de começar ressaltando que as diretrizes para a construção do caso, neste modelo, se apóiam na premissa de que, diferentemente do método clínico descrito acima, os sintomas não devem ser tomados exclusivamente como significantes que designam as alterações anatômicas e fisiológicas que constituem a doença, mas como significantes que adquirirem significado apenas quando relacionados com outros significantes do caso. Isso significa admitir a não existência de uma relação unívoca entre o sintoma e a doença, deduzida como seu significado. Supõe a consideração de que, se o sintoma é um sinal, antes de ser o sinal de uma alteração anatômica, ele é o sinal de um sujeito.

Os casos clínicos, muito frequentemente, não são transparentes nem tampouco fornecem, de início, uma lógica evidente. E é justamente o que se apresenta como enigmático no caso o que faz obstáculo para sua resolução que articula a equipe em torno do trabalho da clínica. Trabalho que só se coloca em marcha em função de algum desconforto, que exige a implicação e compromisso dos participantes.

Partindo desta perspectiva, podemos dizer que “A Equipe” não existe antes da constituição deste trabalho. Não existe simplesmente como uma imposição e um laço institucional, pois, pensada deste modo, a equipe nada mais é do que um amontoado de profissionais presos a suas rotinas. A verdadeira equipe só se constituindo em torno da construção de um caso clínico, que exige como conseqüência o trabalho de muitos.

E como se daria este trabalho? Começaremos dizendo que em qualquer atendimento seja ele médico, psicanalítico ou outro a primeira avaliação é feita pelo próprio paciente, que julga, pensa e mede seu sintoma. Isso significa que, salvo algumas exceções, não há paciente a revelia de si mesmo e que o primeiro pedido feito pelo sujeito que tratamos é o de ser admitido como paciente. Esse pedido, como já dissemos, se baseia numa auto-avaliação que deve ser acolhida pelos profissionais que o assistem.

Este é então um primeiro ponto que devemos considerar na construção do caso clínico, qual seja, o fato de que o saber do paciente sobre seu corpo, seus sintomas e sobre sua doença pode e deve contribuir para a construção do saber acerca do próprio caso.

Quando construímos um caso clínico não podemos prescindir da experiência pessoal que o doente faz de sua doença. Não o convidamos a se desprender das interpretações subjetivas sobre o que lhe ocorre. Não excluímos o que o paciente pensa e sente sobre sua patologia e seu corpo.

Conduzir o caso deste modo seria o mesmo que instaurar todo o saber do lado dos profissionais de saúde, enquanto do lado do doente encontraríamos apenas o desejo de curar-se.

Seria o mesmo que usurpar do doente sua doença e seu sofrimento. O mesmo que equiparar a assistência prestada pela equipe a uma função super-egóica sob a qual o paciente deveria curvar-se.

Sendo assim, o primeiro passo para a construção do caso clínico é o de se interessar pelo que o paciente tem a dizer, sabendo que os elementos que ele traz acerca de sua doença, as interpretações que constrói a respeito de seus sintomas vão ser, como já dissemos, parte constituinte do saber construído sobre o caso. Considerando também que a questão que traz o sujeito e sua demanda são centrais e determinarão o percurso de seu tratamento.

O segundo ponto diz respeito ao fato de que a construção do caso clínico, numa equipe interdisciplinar, pressupõe uma renúncia narcísica nos profissionais que a compõem.

Tal renúncia relaciona-se à posição de ignorância que deve ser assumida por cada membro do grupo, e é o efeito da deshierarquização do saber prévio, do saber constituído, dos títulos e dos diplomas. Tudo isso deve ser fortemente relativizado em função da posição de pesquisa e de questionamento que é própria da clínica e que produz, como sua principal conseqüência, a divisão da responsabilidade sobre o caso.

Obviamente, cada profissional de saúde está bem informado sobre a teoria que fundamenta sua disciplina. Quando me refiro à posição de ignorância dos profissionais busco indicar que os saberes em jogo, na equipe interdisciplinar, não devem ter a pretensão de serem completos nem onipotentes. Tampouco devem almejar algum tipo de complementação que vise a constituição de um saber total. Os saberes em jogo na construção do caso clínico devendo funcionar, de preferência, como dissimétricos, produzindo continuamente o giro dos discursos.

Na construção do caso clínico, é importante a preservação de um ponto de não saber. É essencial a manutenção de uma zona de indisciplina dentro das disciplinas que se solidarizam para conduzir o tratamento. A sustentação desta zona de indisciplina não domesticada pelo saber é o que permite, em primeiro lugar, que a verdade sobre o paciente não seja jamais totalizada e, em segundo, que as construções a respeito daquele caso possam ser sempre repensadas e renovadas.

A presença de um vazio no campo do saber é o que possibilita a invenção de novos saberes e soluções. O saber completo é o saber enciclopédico, estagnado e morto e sua renovação só pode se dar quando, na condução do caso, a equipe encontra-se com um ponto de não saber, algo que não pode ser descrito pela enciclopédia de nenhuma das disciplinas.

Neste contexto, ao invés dos profissionais tentarem preencher e obturar seus pontos de ignorância, dá-se lugar à invenção, a uma maneira inédita de se descrever aquilo que inicialmente apresentou-se como uma interrogação, um impasse. E é claro que as invenções na condução do caso podem ser tanto invenções dos profissionais quanto do próprio paciente, quando a equipe é capaz de acolhê-las.

Vejam, então, que a construção do caso implica um saber que não é da ordem de uma teoria universal, totalizadora e normativa. O saber gerado na construção de um caso clínico fundando-se na singularidade do sujeito, pois, a experiência clínica é justamente o lugar onde a teoria se apaga para dar lugar às contingências e idiossincrasias daquele que se apresenta sofrendo diante de nós. A noção de construção do caso clínico exige que a experiência clínica se torne parte constituinte do saber por ela gerado. Ao assumir esta perspectiva, devemos esperar da clínica algo equivalente ao que a ciência espera da experimentação, o que significa preservar a possibilidade de nos deixar surpreender pelas novidades que, aí, possam surgir.

O que se encontra em questão na construção do caso é, na verdade, um processo dialético que pressupõe um contínuo ir e vir entre a teoria e a experiência clínica. Entre a teoria já estabelecida e o saber que podemos extrair da experiência. Digo que é um processo dialético porque, evidentemente, só pode haver algum tipo de orientação e de direcionamento na clínica a partir da referência a um saber já constituído. Deste ponto de vista, temos que admitir que o caso clínico se insere na série dos paradigmas que são admitidos numa determinada comunidade epistêmica, não podendo escapar do confronto com uma certa generalização. Por outro lado, a noção mesma de construção do caso requer que a equipe considere as singularidades encontradas na experiência, como pontos de variação da estrutura já constituída. O singular do caso não é algo dedutível da estrutura teórica já dada e só pode se tornar um elemento balizador do tratamento se os profissionais de saúde forem capazes de preservar – como já ressaltamos acima as pequenas zonas de indisciplina dentro das disciplinas nas quais foram formados. Se forem capazes de produzir um certo apagamento do saber já instituído com o objetivo de acolher e valorizar os movimentos e as particularidades do sujeito doente que se apresenta, recolhendo inclusive as passagens subjetivas que fazem diferença na direção do tratamento. A construção do caso clínico só podendo acontecer a partir da consideração das pequenas idiossincrasias que vão surgindo ao longo da condução do caso e que devem ser não apenas notadas pela equipe mas, sobretudo, incluídas como elementos de orientação para a condução mesma.

 

BIBLIOGRAFIA

BASZ, S. Apuntes para la construcción del caso en Psicoanálisis . X Jornadas Anuales de la EOL

CLAVREUL, J. A ordem médica – poder e impotência do discurso médico . Rio de Janeiro: Relume Dumará.

FOUCAULT. M. O nascimento da clínica . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

MILLER, JA. “O método clínico”. In:Lacan elucidado – Palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

 

Extraído de http://www.ipappi.com.br